A Resignação Nas Relações Amorosas Sob a Ótica da Posição Psíquica do Feminino: Uma Análise Psicanalítica a partir da Canção "Eu Escolhi Você" de Clarice Falcão
As relações afetivas constituem um complexo campo de interações humanas, em uma sociedade impulsionada pelo consumo e pela busca incessante por novas experiências, influenciadas por fatores sociais, culturais e psicológicos. A canção “Eu Escolhi Você”, de Clarice Falcão, oferece uma perspectiva intrigante sobre a dinâmica das escolhas de relacionamentos amorosos, no que diz respeito à posição psíquica do feminino.
Através da lente da psicanálise, é possível explorar a “resignação
amorosa” como elemento representado pelo eu lírico da canção, e compreender
como essa condição reverbera os desafios enfrentados pelo feminino na
contemporaneidade, em contraposição à liberdade de investimento do masculino em
distintas opções românticas.
Este artigo visa analisar as implicações do que denominamos resignação
amorosa, identificando o problema sob a ótica psíquica do feminino, e, por fim,
formulando hipóteses acerca das possíveis causas à luz dos princípios
psicanalíticos.
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Figura 1: fonte: captura de tela, "Eu Escolhi Você" (Vídeo Clipe, 2016) |
A Problemática da Resignação Amorosa na Perspectiva Psicanalítica
A canção “Eu Escolhi Você” evidencia (o que a psicanálise
designa de) a posição psíquica do feminino, ao fazer uma escolha específica.
Clarice Falcão, ao optar por essa temática em sua canção, abre espaço para a
reflexão sobre a autonomia da mulher na tomada de decisões amorosas. A
protagonista da música sugere ter feito uma escolha resignada com o seu próprio
caminho afetivo. Dessa forma, podemos estabelecer uma interconexão entre a
canção e as teorias psicanalíticas, proporcionando uma compreensão abrangente
das dinâmicas presentes nos relacionamentos afetivos.
Do ponto de vista psicanalítico, essa resignação amorosa,
como uma manifestação da dinâmica psíquica do feminino, é permeada por
influências ancestrais e contemporâneas. Ela representa uma problemática para a
mulher, por sugerir uma aceitação passiva de relações que podem não atender
plenamente às necessidades e desejos femininos. Isso pode resultar em uma
diminuição da autonomia e satisfação nos envolvimentos afetivos, restringindo a
capacidade das mulheres de buscar e cultivar vínculos que verdadeiramente as
realizem emocional e sexualmente. Além disso, a resignação pode ser reflexo de
expectativas sociais e pressões culturais que limitam as opções percebidas pelo
feminino, reforçando padrões de submissão e conformidade.
A Posição Psíquica do Feminino, e A Resignação Amorosa na Lyrics de Clarice Falcão
A canção “Eu Escolhi Você”, de Clarice Falcão, é uma
reflexão irônica e sincera sobre a complexidade de escolher um parceiro amoroso
em um contexto onde as opções são limitadas e nem sempre ideais. Sua letra é
marcada por um tom de resignação e humor, revelando a vulnerabilidade e as
incertezas envolvidas na busca pelo afeto. O verso inicial, “Eu escolhi você
porque / Não tá tão fácil assim de escolher”, já sugere que o eu lírico está
ciente das dificuldades e limitações presentes na seleção das opções disponíveis
de um parceiro. Nas linhas “Tem muita gente ruim, / E quando não é ruim, é
porque não gosta de mim, / Aí termina que no fim só tem você”; a protagonista
destaca a existência de pessoas que não são compatíveis ou que não demonstram
interesse genuíno, o que acaba deixando apenas uma opção viável.
O verso seguinte, “Eu escolhi você porque / Não tinha tanta
gente pra ser meu, vê só”, apenas enfatiza tal escassez de opções adequadas
para a protagonista. E a expressão “dos males o menor” reflete a ideia de que,
diante de uma seleção limitada, a escolha acaba sendo uma questão de
praticidade. No verso consecutivo, “Na minha vida já existiram / Cinquenta
opções de amor, / Quarenta e nove desistiram, / E você foi o que sobrou.”,
ressalta a experiência da protagonista em lidar com diversas opções amorosas que
fracassaram. O fato de ter havido 49 desistências anteriores é que destaca a
dificuldade em encontrar um relacionamento duradouro e satisfatório.
O último trecho, “Eu escolhi você, / Com fé de não me
arrepender de te escolher, / Até um outro aparecer. / Não fica triste não, / Eu
escolhi de coração, / Também por falta de opção, mas foi você.”, expõe a
sinceridade da protagonista ao admitir que a escolha foi feita com base na
falta de alternativas; mas também com a esperança de que o relacionamento possa
trazer felicidade e satisfação. A escolha final, portanto, é um reflexo da
persistência e da vontade resignada de encontrar um parceiro. Nesse contexto,
presencia-se a conjectura da posição psíquica do feminino, ao eu lírico
encontrar-se diante de uma incompatibilidade regulamentar, ou de uma resignação
das escolhas práticas, ou de uma esperança igualmente resignada; na presença de
alternativas sempre restritas, frequentemente inadequadas ou desinteressadas,
culminando na criação de um cenário desafiador.
Em comparação a essa posição psíquica do feminino, a canção
também sugere uma dinâmica diferente na forma como o masculino encara os relacionamentos.
No arcabouço psicanalítico, essa abordagem se associa à ideia de tensão entre
escolher e ser escolhido, onde a posição psíquica do masculino se permite
investir afetivamente em diversas preferências, mantendo abertas as portas para
várias escolhas. Enquanto o feminino, ao declarar “eu escolhi você”, implica
que, dentre um número limitado de opções disponíveis, o objeto de seu afeto foi
selecionado com resignação.
Esta condição resignada sugere uma aceitação das
circunstâncias, onde a protagonista delibera não por preferência, mas por falta
de opções satisfatórias. A resignação amorosa do feminino, portanto, manifesta-se
como uma aceitação consciente das limitações do contexto relacional. Por outro
lado, o masculino, ao investir em múltiplas possibilidades, enfrenta a
probabilidade de ser escolhido por uma delas. Isso sugere uma vulnerabilidade
ao processo de seleção, onde ele se encontra em uma posição de espera e
expectativa. E essa dinâmica pode suscitar emoções como ansiedade e insegurança.
É interessante notar que as representações simbólicas do feminino e masculino na canção estão alinhadas com esse aparente contrassenso. O feminino, ao fazer uma escolha resignada, adota uma postura ativa, assumindo o papel de sujeito da decisão. Por outro lado, o masculino, ao investir em múltiplas opções, pode ser associado a uma postura mais receptiva, aguardando a decisão do feminino.
No âmbito biológico, as representações simbólicas também seguem um caminho contrário ao senso-comum. A compreensão tradicional da dinâmica reprodutiva, onde os espermatozoides eram vistos como os únicos agentes do processo de fertilização, navegando em um ambiente ácido em direção ao óvulo passivo, representa uma visão ultrapassada da biologia reprodutiva. Contrariando esta concepção, os avanços na pesquisa científica revelam que o óvulo desempenha um papel ativo e decisivo na seleção do espermatozoide que terá sucesso na fertilização. Essa mudança de perspectiva não apenas enriquece nossa compreensão da biologia reprodutiva, mas também desafia e corrige concepções antiquadas que subestimavam o papel do óvulo nesse processo.
No geral, “Eu Escolhi Você” é uma canção que aborda de maneira franca e bem-humorada as complexidades envolvidas na busca pelo amor, destacando (para além da problemática da resignação) a importância de ser autêntico e realista ao fazer escolhas afetivas. A música ressoa com muitos que enfrentam dilemas semelhantes na busca por um parceiro compatível e reflete a sinceridade e a vulnerabilidade presentes nas relações humanas.
Hipóteses sobre as Causas da Resignação Amorosa
A resignação das relações amorosas, como representada na
canção, pode ser atribuída a uma série de causas contemporâneas. E compreender
essa condição do feminino à luz da psicanálise envolve uma análise detalhada de
diversos fatores interligados que influenciam as escolhas e dinâmicas afetivas das
mulheres.
A sexualidade feminina, por exemplo, é multifacetada e
altera de indivíduo para indivíduo. As mulheres podem ter fantasias e desejos
intensos, de maneiras diversas e complexas, e quase sempre mal compreendidos.
Esta complexidade pode influenciar as escolhas românticas, uma vez que elas busquem
relações que atendam às suas necessidades emocionais e sexuais de maneiras
únicas. Isso ressoa com a canção, que revela uma protagonista que fez sua
escolha consciente; mas também é passível de futuras decisões influenciadas
pelo contexto e por uma dinâmica de poder e desejo. Além disso, para muitos
homens, a busca e a conquista são consideradas partes fundamentais do processo
de relacionamento. A ideia de ser “escolhido” é vista como uma forma de
passividade, o que pode influenciar como o feminino percebe as suas próprias
escolhas e influências na dinâmica afetiva. Essa perspectiva pode moldar a
maneira como as mulheres abordam e avaliam as opções de relacionamento.
As normas sociais e culturais também desempenham papéis
significativos frente a condição de resignação amorosa. As mulheres podem
sentir pressão para seguir padrões predefinidos de comportamento e escolha de
parceiro, reiteradamente moldados por valores tradicionais de gênero. Essa
pressão pode limitar as opções percebidas, levando a escolhas baseadas na
aceitação social e conformidade com as expectativas. Para mais, existe a
própria expectativa de que os homens assumam a liderança nos relacionamentos,
tomando a iniciativa nas abordagens românticas e demonstrando interesse. Essa
expectativa influencia as decisões das mulheres, levando-as a escolher entre as
opções disponíveis, em vez de buscar ativamente relações que atendam plenamente
às suas necessidades e desejos.
As experiências familiares e os relacionamentos passados também
exercem o seu papel na formação das dinâmicas afetivas das mulheres. A forma
como foram criadas e os modelos de envolvimentos que testemunharam influenciam
fortemente suas expectativas e comportamentos amorosos. Por exemplo, se
cresceram em um ambiente onde predominava a resignação ou a submissão da figura
feminina, é possível que internalizem esses padrões como normais e até mesmo
desejáveis em suas próprias relações. Da mesma forma, experiências passadas,
como relacionamentos abusivos ou traumáticos, deixam marcas duradouras, levando
as mulheres a serem mais propensas a aceitar situações que não as beneficiem
plenamente.
A psicanálise também destaca o simbolismo do falo não apenas
como um órgão anatômico, mas como um símbolo de poder psíquico e social. Neste
contexto, a dinâmica de desejo, poder e submissão desempenha um papel
categórico nas relações amorosas. Essa dinâmica é essencial para compreender as
escolhas da protagonista na canção de Clarice Falcão. A escolha de um parceiro
é vista como uma decisão que envolve não apenas o desejo; mas também a
percepção de quem detém o poder na relação. Ao escolher, a protagonista assume
uma posição de autonomia e determinação, sugerindo que o poder está
temporariamente em suas mãos.
Ao considerar esses fatores, torna-se claro que a resignação
do feminino nas relações amorosas é um fenômeno intricado, influenciado por uma
interação complexa de fatores psicológicos, sociais e culturais. A compreensão
detalhada desses elementos é essencial para abordar de maneira sensível e
eficaz as dinâmicas afetivas e promover relacionamentos mais saudáveis e
satisfatórios para todas as partes envolvidas. Apesar de tudo, percebe-se desde
já algumas mudanças nas dinâmicas de gênero, que refletem uma evolução nos
papéis, expectativas e percepções associadas aos diferentes gêneros, afetando a
forma como as pessoas se relacionam, trabalham, e participam da esfera social.
Essas mudanças dizem respeito a desconstrução de
estereótipos associados a masculinidade e feminilidade; ao empoderamento feminino
em termos de igualdade de direitos; a participação econômica das mulheres em
setores tradicionalmente dominados por homens; a reconfiguração dos papéis
parentais, na busca por equidade na divisão de tarefas entre pais e mães; ao
reconhecimento e inclusão de identidades de gênero diversas; as mudanças nas
normas de beleza e estilo (na celebração da diversidade de corpos); a ampliação
de diálogos sobre saúde mental e bem-estar; e a uma maior diversidade de
arranjos familiares e de relacionamentos, incluindo casais do mesmo sexo,
famílias monoparentais e outras configurações que desafiam a noção tradicional
de família.
Conclusão à Luz da Psicanálise
A canção “Eu Escolhi Você”, de Clarice Falcão, oferece um
panorama rico e multidimensional das complexidades presentes nas relações
amorosas e do problema da resignação do feminino, sob a perspectiva da
psicanálise. Ao considerar não apenas os fatores conscientes; mas também os
elementos inconscientes que moldam as escolhas afetivas, é possível compreender
as motivações subjacentes à condição resignada.
Nesse contexto, a contemporaneidade traz consigo uma série
de desafios que influenciam as posições psíquicas e as dinâmicas amorosas. A
compreensão da posição feminina na escolha de um parceiro requer uma abertura
para a diversidade de experiências e perspectivas nos relacionamentos. À medida
que a sociedade continua a evoluir e desafiar as normas tradicionais de gênero,
é possível que essa perspectiva seja mais amplamente compreendida e aceita por
todos os gêneros.
Ao considerar o poder como um componente intrínseco na
escolha de parceiros; igualmente, a complexidade da sexualidade feminina; a
pressão social e de normas culturais; a expectativa de iniciativa masculina; as
concepções sobre busca e conquista; bem como a influência da submissão e do
desejo na dinâmica das relações, somos levados a uma compreensão mais profunda
das variáveis que afetam a maneira como as mulheres fazem escolhas em seus relacionamentos.
A problemática do feminino, ao fazer uma escolha resignada,
destaca a importância da autonomia e da capacidade de definir o próprio caminho
afetivo. Por outro lado, a liberdade do masculino em investir em múltiplas
opções ressalta a complexidade das emoções e expectativas associadas à busca
por satisfação emocional. Esta análise conjunta amplia nossa compreensão das
interações entre os gêneros e destaca a importância de uma abordagem sensível e
empática na interpretação das relações amorosas.
Em última análise, a canção nos convida a discernir sobre a posição
psíquica do feminino, a natureza dinâmica e desafiadora dos relacionamentos. E,
na compreensão da resignação amorosa das mulheres contemporâneas, refletir
sobre a necessidade de promover uma cultura de relacionamentos mais saudável e
satisfatória, que considere não apenas os desejos conscientes; mas também os
elementos mais profundos e complexos que influenciam os nossos desígnios afetivos.
Leonardo Hutamárty, escritor, estudioso da psicanálise e
amante da música,
novembro de 2023.
REFERÊNCIAS:
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Libertar-Se: Jessica Benjamin E Os Laços De Amor. 2018. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v24n3/v24n3a03.pdf>
Acesso em: 04 de novembro de 2023.
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Letras. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/clarice-falcao/escolhi-voce/>
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SANTOS, Leandro dos. Leandro dos Santos (Psicanalista) (154)
| À Deriva Podcast com Arthur Petry. 26/11/2021. 1 Vídeo (3:11:17) Publicado
pelo canal: À Deriva Podcast. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2gt7tvGhO8M>
Acesso em: 04 de novembro de 2023.
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