A Experiência de Terror Cinematográfico para Além da Metafísica: Uma Reflexão sobre a Negação Niilista da Existência, e o Mal Ontológico
O cinema, enquanto veículo de expressão artística, cultural e de reflexão filosófica, detém a capacidade de evocar no espectador uma ampla gama de emoções e incitar profundas reflexões sobre a existência humana, sendo o terror uma delas.
Tradicionalmente, o terror cinematográfico esteve ligado a
elementos sobrenaturais e metafísicos, onde a fé e a crença em forças para além
da compreensão humana servem como pilares para a experiência subjetiva do medo.
No entanto, ao espectador ateu, marcado por uma concepção secularista e niilista,
esse impacto cinematográfico não surte o mesmo efeito; necessitando a
emergência de uma nova forma do gênero (um subgênero?), interessada em cativar
tal público.
Este artigo propõe a refletir o sentimento de terror
cinematográfico através da experiência niilista, onde o medo advém da
confrontação com a aparente falta de significado do ser e a presença do mal
ontológico inerente à condição humana. O mal ontológico, como uma manifestação
estrutural da contingência, é o que negará qualquer sentido e significado, se
configurando como a mais profunda e estrutural forma de mal.
Para ilustrar este argumento, será analisado o episódio “Rick
Poção”, da primeira temporada da série televisiva “Rick and Morty”,
onde a clonagem humana é utilizada para desafiar os limites da identidade e da
moralidade; culminando na perturbadora cena em que Rick e Morty enterram os seus
próprios cadáveres no quintal de casa.
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Figura 1, fonte: captura de tela, “Rick and Morty” (temporada 1, episódio 6, 2014). |
A Transição do Terror Sobrenatural para o Niilista
Historicamente, o terror cinematográfico esteve intrinsecamente
vinculado à crença na existência de um plano metafísico. Ou seja, a elementos do além, como entidades, demônios e forças sobrenaturais, além da compreensão
humana, que podiam interagir com o mundo dos vivos, servindo como substrato
para a experiência do medo.
No entanto, a contemporaneidade também testemunha a
possibilidade da experiência niilista do terror fílmico, que emerge da
percepção de que a existência carece de um propósito ou significado intrínseco.
O espectador é confrontado com a ideia de que, no grande esquema das coisas,
somos insignificantes e a busca por sentido é uma empreitada fútil.
A título de exemplo, “A Casa Que Jack Construiu”
(2018), de Lars von Trier, é um filme que explora o terror sob a perspectiva do
niilismo ─ “de redução de crenças ao nada, de aniquilamento de valores e
convicções, de não existência”. Ao acompanhar a jornada de Jack, um assassino
em série, o longa não busca apenas o choque pelo choque, o horror pelo horror. Ele
se propõe a ser um exercício narrativo de negação de todos os valores, ao
representar um personagem que enxerga o mundo, o corpo e a matéria como
pertencentes a uma mesma dimensão ordinária, desprovida de qualquer significado
e moralidade.
Essa nova dimensão para a experiência aterrorizante, onde a
fé e a metafísica cedem espaço para o niilismo, gera um desconforto existencial,
levando o espectador a questionar não apenas a natureza da realidade, mas
também a própria essência de sua autenticidade.
O Mal Ontológico e a Falta de Ser como Fontes de Terror
Além de firmar a falta de significado, o niilismo também
expõe o lado obscuro e moralmente ambíguo da existência humana. Ao confrontar a
ideia de que não há padrões morais objetivos, o espectador se depara com a
possibilidade de o mal não ser apenas uma abstração; mas uma força ontológica,
que investiga a natureza da realidade e do ser, presente em cada indivíduo.
A contingência é a negação radical de qualquer sentido e
significado, representando a falta de ser. O mal ontológico, por sua vez, sendo
uma concepção filosófica, se erige como uma forma estrutural da contingência. Esta
se apresenta como a mais profunda e basilar manifestação do que significa o mal:
a falta de ser. A contingência ─ por definição, “o modo de ser daquilo que não
é necessário, nem impossível, mas que pode ser ou não” ─, lança uma sombra
sobre a própria existência, esmagando qualquer tentativa de conferir coesão e
propósito ao tecido da realidade.
A teodiceia, enquanto uma área de investigação filosófica,
irá buscar conciliar a existência do mal com a existência de um Deus
benevolente e onipotente. No entanto, esta realidade contingencial, e,
portanto, perturbadora, que expõe a ausência intrínseca de sentido no ser,
converge para suscitar uma categoria de terror que vai além do sobrenatural,
atingindo as profundezas da psique humana.
A Narrativa de “Rick and Morty” na Exploração Niilista do Terror
O episódio 6, intitulado “Rick Poção”, da temporada 1 de
“Rick and Morty” (2013─2014), exemplifica de forma notável a
interseção entre o terror e o niilismo. Por meio da clonagem, Rick desafia os limites
da identidade e da moralidade, embaralhando as fronteiras entre vida e morte.
Ao misturar os rótulos de seus clones propositalmente, o episódio questiona a
noção de autenticidade e a natureza efêmera da existência.
O ápice do terror niilista e a experiência do mal
ontológico são encapsulados no desfecho do episódio, quando Rick e Morty se
veem diante dos corpos de seus próprios clones. Esta cena final, onde os
personagens enterram os próprios cadáveres no quintal, ressoa como um retrato
angustiante da fragilidade da vida e da relatividade da identidade. A
experiência do espectador vai além do simples susto, mergulhando em um estado
de desconcerto diante da brutal honestidade do niilismo, e da presença
inexorável do mal ontológico.
A Convergência do Terror Cinematográfico e a Relevância Contemporânea da Abordagem Niilista
Na busca por novas formas de impactar o espectador,
sobretudo o público que se vê distante das crenças metafísicas tradicionais, a
abordagem niilista do terror fílmico se torna cada vez mais relevante para a
indústria de cinema contemporânea.
Neste contexto, a contemporaneidade testemunha não uma
ascensão do niilismo; mas um crescente interesse por perspectivas que desafiam
as crenças metafísicas tradicionais, oferecendo uma nova lente para compreender
a existência humana e o terror que a permeia.
O episódio de “Rick and Morty” e o filme “A
Casa Que Jack Construiu” servem como exemplos expressivos desta
convergência do gênero Terror; ao desafiar as noções de identidade e
moralidade, e lançar questionamentos sobre o ser e a percepção da falta de
sentido da vida, culminando em cenas que deixam uma marca indelével na mente do
espectador.
A experiência niilista do medo, ancorada na confrontação
com a suposta falta de significado da vida, e com a presença do mal ontológico,
do mal inerente à humanidade, proporciona uma profundidade emocional e
filosófica que transcende as fronteiras do sobrenatural. Esta nova dimensão do
terror, que vai muito além das convenções do gênero, não apenas perturba, mas
também incita a uma profunda reflexão sobre a natureza efêmera e, por vezes,
brutal da existência humana.
Em última análise, a contribuição do terror cinematográfico, sob essa tal perspectiva, ocorre ao desafiar as estruturas de significado e ordem que já damos por garantidas, isto é, ao desconstruir uma ordem de valores já estabelecida. Igualmente, ao sugerir a ausência de padrões morais objetivos, que nos faz examinar a natureza do mal e da moralidade, podemos explorar a complexidade das escolhas morais em um mundo onde não existem certezas. Ao revelar também a vulnerabilidade e a fragilidade inerentes à nossa condição humana, isso nos guia a uma apreciação mais aguçada do valor do tempo e das nossas relações.
Desse modo, desafiando essas suposições e convicções arraigadas, é que esta nova dimensão do terror fílmico nos convida (a nós, espectadores) a mergulhar em uma seara de autoconhecimento e compreensão mais rica da natureza da vida e da condição humana.
Leonardo Hutamárty, escritor e crítico de cinema,
outubro de 2023.
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23.
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Acesso em: 21 de outubro de 2023.
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